De aspecto, era soberbo, jantes de 17 ou 18”, pneus com lista branca larga, verde “cueca” no corpo e verde-escuro na capota ou tejadilho. Os cromados da entrada de ar já eram aerodinâmicos. Tinha seis cilindros em linha, imponente como era qualquer Opel Kapitan. Os bancos eram corridos de pele meio acastanhada. Junto ao volante, sobressaía uma alavanca de velocidades que geria três velocidades para a frente e uma de marcha atrás. Ao meio do tabliê impecavelmente cromado destaca-se um vistoso rádio PYE, com uns 8 botões.
Um Domingo de 1966.
Data precisa, não sei, talvez julho de 1966. Como sempre, desde muito cedo havia o ritual de lavar e polir o velho Opel Kapitan, para depois dar uma volta, a chamada “volta da secagem”.
Final de uma manhã de Domingo:
Opel Kapitan, lavadinho, esplendoroso, prepara-se para a sua volta. Saio de casa, no Marçal, e sigo em direcção aos Armazéns Sameiro, pisca à direita, Serração Bailundo, Bairro dos Pintos, Avenida do Brasil. Junto à Panificadora, toca a sirene e mandam encostar, era a BT da PSP.
“Os seus documentos?” Népia. “Idade?” 14 Anos. “Não sabe que não pode conduzir?” Já tenho prática. “Mas tem carta”, riposta o Guarda da PSP. “Entra e leve o carro para casa, que nós seguimos atrás de ti.”
Pisca à direita, Rua Paiva Couceiro. Avenida dos Combatentes, pisca à direita. Bairro dos Teixeiras e casa, tudo isto no meio de muito trânsito.
Segunda-Feira seguinte:
Tribunal de Luanda, perto do Cinema Restauração. Seriam cerca das dezoito horas – final de tarde -, estava a escurecer, os julgamentos eram feitos quase que em fila indiana. Entro na sala, e num patamar elevado está um Juiz de bastante idade, óculos de forte graduação, enterrado na cadeira, que pergunta, “Idade?” 14 anos. “Aproveitamento escolar?” Bom. “Estás de férias?” Estou, sim Senhor Doutor Juiz. “Então vais condenado com oito dias de prisão efectiva, pelo crime de condução sem carta de condução, com 5 anos de pena suspensa.” Não respondi, não chorei, estava com raiva, eu e o Guarda da BT, já que fui o único a ir de férias, ou outros pena suspensa.
*
A “Ramona” era uma velha Ford Transit, pestilenta, mal cheirosa e estamos uns quinze, tal qual sardinha em lata. A Cadeia de Luanda ficava junto à rotunda da “Asfal”, com quem ia para o Cacuaco. Já passava das vinte horas, quando a “Ramona” entrou no Páteo do Espaço Prisional. Procedimentos normais do “despe a roupa e veste o fardamento”.
Como era tarde, fomos todos para uma cela colectiva, daquelas com mais de cem pessoas. Era de meter medo, assustador. Sei que dormi com os “Keds da Macambira” debaixo da cabeça, em cima de uma mesa corrida, cheio de medo de fome e com a tarefa de limpar as casas de banho, de madrugada. “Se quiseres protecção, manda trazer dois volumes de ‘Francesinhos’ ou ‘Jucas’”, que eram uns maços de cigarros que se vendiam depois avulso.
Costumo dizer que tenho sempre um Anjo da Guarda, pelo que a meio da manhã sou chamado ao Director da Cadeia, que me pergunta, “que idade tens?” 14 anos. “O Juíz mandou-te para aqui, com esta idade?! Bem, vou tirar-te dali e vou colocar-te numa cela onde está um tipo que nunca sai da cela.”
Assim foi. Peguei nas coisas e vou para o 1.º andar topo-nascente, virado para o mar, com a vantagem de poder apreciar os barcos e belo estaleiro de barcos a vela de um velho amigo, que navegava em “Finn”, cujo nome era de origem espanhola.
O meu parceiro de cela era muito moreno, cabelo curto, com feições marcadas de sofrimento e olhos bem encaixados na face. Pouco falava e era obcecado pela leitura de livros, em que as curas eram originadas por produtos naturais. Tinha uma enorme colecção de livros sobre a cura com maçãs, vinagre, alho, sei lá… O próprio Director da Cadeia falou com ele e exigiu que ele fizesse a minha protecção, já que o meu colega de cela estava condenado a pena pesada e era dos mais antigos da cadeia. Para mim, o olhar do homem metia medo: olhos profundos, esbugalhados, como que um psicopata. Acordava de noite e começava a recitar versículos da Bíblia, dizia ele que era para “expiar” o seu pecado, de ter feito justiça com as suas mãos, quando é manchada a sua honra de homem ou marido.
Na cadeia, havia dois turnos de ida ao pátio: um de manhã e outro à tarde. À quinta-feira, havia uma sessão de cinema. Por norma, uma coboiada ou um filme de espadachim, lembro-me que o filme era um western com John Wayne.
No recreio, a ponto mais seguro, era encostado a parede e próximo de uma porta – para basar ou então ficar na cela. Lembro-me de ver o Joãozinho das Garotas, um antigo Tesoureiro das Finanças que palmou milhares de contos com a sua trupe, qual Al Capone. Era impressionante ver o Joãozinho das Garotas, rodeado de “seguranças”, lembro-me de ouvir dizer que era considerado um herói, já que palmou umas massas ao Colonizador.
Uma segunda-feira, oito dias depois, em 1966
Dezanove horas, o Guarda Prisional abre a porta da cela e diz, “está lá fora o teu pai, que te vem buscar”. Dou um abraço ao meu amigo das curas milagrosas, entrego a farda, visto a minha roupa e lá estava, brilhante, resplandecente, o Opel Kapitan. O meu pai, teve a ideia de levar o carro a brilhar, imponente com só um Opel Kapitan, pode estar. Sobe a rampa para a Asfal, segue pela Estrada do Sambizanga, cruza a Estrada da Cuca e entra em terra parando junto ao Zé das Molas, saí do Opel Kapitan e disse-me, “leva o Kapitan para casa”.
Mais tarde fui visitar o meu amigo das curas milagrosas…
“Quando o avião levantou voo e fez a curva para a direita tive a noção exacta que seria a última vez que veria a minha Terra, Terra em que tinha nascido e por opção Terra que queria ajudar a crescer.”
Comentários
Um comentário a “OPEL KAPITAN VERSUS FÉRIAS GRANDES”
Muito bom,Capitão!