Penso que foi em 1964 ou 1965, ui a tampo tempo. Era uma epopeia a viagem de comboio entre Luanda e Malange. Saímos cedo e chegávamos ao final do dia. Luanda e Malange possuíam umas estações imponentes, típicas do Estado Novo, em que os Chefes das Estações vestidos de branco dos pés à cabeça, com um simbolismo impressionante davam as partidas e chegadas aos comboios.
Nessa altura tinha uns 12 ou 13 anos, mas o bichinho da aventura já andava por cá, apanhava o, pouca-terra, pouca-erra, na Estação da Boavista e rumava a Malange onde tinha uma irmã.
A Canhoca era quase como que um ponto de viragem na longa viagem de 400 Kms, pois não era mais que um “entreposto”, onde os comboios se reabasteciam, e os passageiros podiam comer uma refeição quente, numa Casa de Pasto de apoio a Estação. Era um reboliço total, umas terrinas de sopa, e por norma carne guisada. Por este motivo a Canhoca foi sempre uma referência nas minhas memórias de jovem aventureiro.
Ao fim do dia, chegávamos a Malange e lá tínhamos o cerimonial do Chefe da Estação devidamente fardado a receber o comboio e passageiros, depois de quase 10 horas de pouca-terra, pouca-terra. Mais tarde começaram a circular as automotoras Allan, que ainda a uns tempos circulavam pela Linha da Lousã.
Depois de chegar a Malange, começava outra aventura, aquela que eu queria e desejava, partir com o meu cunhado para a Baixa de Cassanje, para os Campos de Algodão da Cotonang. Era uma viagem de 10 ou 15 dias, num Land Rover Série II 88ª, daqueles com faróis junto ao radiador, com um bidon de 200 lts de gasóleo, alguma comida, nomeadamente peixe seco, arroz e açúcar. Não faltava uma carabina e um farol de caça.
A saída era sempre de madrugada, ainda de noite, por picadas estreitas com muita “chapa zincada”, que abafavam por completo o suave trabalhar do motor do Série II. O ideal era manter a velocidade dentro dos traços vermelhos, ligando o acelerador de mão, lembro-me que se tentava manter os 50 ou 60 Kms/hora, o que era bom. O pior era quando se fazia a viagem na época das chuvas, em que quando se ficava enterrado a coisa se complicava mais. Nestas alturas o peixe seco frito ou misturado com arroz era um bom petisco. Muquixe, Cuculama, Mucari, iam ficando para trás até chegarmos a Cassanje, onde existia um Aquartelamento militar. Havia uma Loja típica do interior de Africa, em que vendia de tudo um pouco, desde bicicletas a farinha de mandioca até óleo de palma. Chegamos muito tarde e não havia luz e lembro-me perfeitamente de comer arroz de tomate com peixe seco frito. No dia seguinte após o trabalho, a viagem continuava para a zona mais importante, a Reserva de Milando. Era a esta zona que eu queria chegar. Por norma entrava em Milando quase a noite em direcção a Marimba.
Nessa altura eu passava para o volante, conduzia pela picada e o meu cunhado colocava o farolim de caça na cabeça, passa para a caixa do Série II e começava a caçada. As noites eram escuras, o farolim percorria a mata a procura de caça de preferência, um antílope ou gazela, nada de palancas ou pacaças, já que estes eram animais de grande porte e não conseguíamos depois colocar os animais no Série II até a próxima localidade.
Eis que a meio da noite, numa zona mais aberta, lá estavam uns olhos a brilhar sob o efeito do farolim e só ouvi o silvo da bala da carabina e a frase “vamos buscar rápido”. Era um antílope de médio porte. Chegamos de manhã a Massengo, e entregamos o animal ao Soba, que o dividiu com o pessoal do quimbo.
A viagem continuou com muitas peripécias, atascanços e outras aventuras, como uma caçada precedida de uma grande queimada, para abastecer de carne o quimbo na zona mais rica em plantação de algodão.
“Quando o avião levantou e fez a curva para a direita tive a noção exacta que seria a última vez que veria a minha Terra, Terra em que tinha nascido e Terra que queria ajudar a crescer.”
Comentários
4 comentários a “CANHOCA VERSUS CASSANJE”
Lindo, lindo, lindo.
Podes continuar.
Bjinhus
Muito bom, continuamos todos a espera de mais…
Abraço
Nuno Santos
Impecavel belas memórias bem contadas…………….deviam de ser bem registadas pois pessoas como estas estão desaparecer…………..
Um abraço….
JCardoso
Parola, tenho muita pena que as “coisas” tenham tomado esse rumo, por outro lado não teria a mulher que tanto admiro ao meu lado. (in)Felizmente não quer voltar para não estragar as memórias que guarda. “É a vida”, diz-se e nós temos que continuar…….
Abraço