BUFO VERSUS CAÇADOR DE PASSARINHOS

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Foi há tanto tempo que não sei a data precisa… talvez 1966.

Foi ao fim do dia quando o Musseque começava a escurecer e o pessoal que trabalhava na cidade retornava para o seu local de pernoita. Eu estava de turno à porta da Loja de Musseque, porque depois das 19h00 não era permitido ter a porta aberta. Tinha de ser um olheiro vigilante – tal e qual um suricata – pois podia aparecer a bófia e multar quem trabalhava.

No canto direito do degrau de ocre vermelho, eu varria a rua mais importante do Marçal, atento as movimentações do pessoal e metendo conversa com os clientes habituais que, aproveitavam para comprar fuba, 100 gramas de açucar amarelo, 20 gramas de café, peixe seco e 10 cigarros francesinhos, negritos ou jucas.

O Caçador de Passarinhos tinha uma moto Java grená, daquelas motos checas em que o pedal das mudanças era o mesmo que servia de “kicks” para por a moto a trabalhar. As “Javas” tinham um trabalhar característico – como que descompensado – e, por norma, tinham a frente mais alta que a traseira.

O Caçador de Passarinhos acabava de chegar de mais uma caçada. Ia sempre para as Mabubas com a espingarda a tiracolo e fazia uma autêntica razia aos passarinhos. Na zona das Mabubas havia muitos bandos de passarinhos – e estes eram dos pitéus muito apreciados no Bar Cravo.

Todos os dias, ao final da tarde, sentia o ronco da Java ao longe. O Caçador de Passarinhos estacionava a Java, carregando no “descanso” central e, com esforço, puxava a mota para trás, sempre com a caçadeira a tiracolo. Pedia um copo de branco e mantinha uma conversa quase sempre até a hora de jantar.

O Caçador de Passarinhos morava em casa do sogro, o Senhor Pinto, uma santa pessoa que tinha uma filha, Amália – de cabelos pretos  encaracolados, morena e muito baixa do tipo “roda 22”. A casa do Senhor Pinto era verde, logo à entrada do Musseque Marçal,e  tinha um rodapé amarelo – uma casa típica da era colonial. O Senhor Pinto tinha uma carrinha Ford muito antiga, daquelas que já só se vê nos filmes. Aos fins de semana, o Senhor Pinto também era caçador de passarinhos (tal e qual o genro), com a diferença que um ia de Java e outro ia de Ford.

Num desses dias, o Caçador de Passarinhos deu o flanco e, para além de ser Caçador de Passarinhos, era também outro personagem – sinistro, como veremos.

Sinto ao longe o ronco da “Java”, e eis que chega o Caçador de Passarinhos, que estaciona a mota em cima do “descanso central”, puxando com esforço a “Java 250”, não largando a caçadeira. Pede um copo de branco e vem conversar para junto do ta degrau de ocre vermelho. Para além da caçada do dia, a conversa do dia virou para terrenos escorregadios, para “apalpar terreno”…

Assim, ao final da tarde quase a escurecer, vejo ao longe o Padre Miguel (que vinha de São Domingos para São Paulo)… e o nosso Caçador lança o tema e a provocação. No fundo, saber de que lado estava e o que é eu pensava da situação. Manifestei os meus pontos de vista e, quando dei por mim tinha ordem de “prisão” para ser ouvido como “contra a situação”. Ainda fui à cadeia da PIDE/DGS lá para os lados do Bairro de São Paulo. Apanhei uma reprimenda e fiquei a saber que o Caçador de Passarinhos era também Bufo e Caçador do Regime.

Mais tarde, o “Bufo” disse aos meus pais que me queria meter um susto, pois entendia que eu estava a ficar subsersivo e com as ideias às avessas…

Quando o avião levantou e fez a curva para a direita tive a noção exacta que seria a última vez que veria  a minha Terra, Terra em que tinha nascido e Terra que queria ajudar a crescer.”