Corria o mês de Setembro do ano de 1975 e a Guerra Civil estava ao rubro em Luanda, mas a vida continuava na sua rotina “quase normal”. Previa-se o pior a qualquer instante, nunca se sabendo se a FNLA atacava Luanda ou se a UNITA traçava um paralelo a partir do Bailundo ocupando todo o sul de Angola. Nessa altura já estava sozinho em Luanda, bem ainda tinha um Tio e Tia que não tinham como regressar e apostavam em ficar na sua terra de adopção.
Certo dia que não me lembra qual, acordo com um barulho infernal de artilharia pesada e o instinto foi pular para a casa de banho, que era interior e deixar acalmar as hostes, mas, qual quê a coisa piorava para pior. Desloco-me para o terraço do prédio que ficava do Cruzamento da Brito Godins com a Vasco da Gama e reparo que o pessoal da FNLA, corria rumo a Baixa, com as suas famosas malas “James Bond”, alguns com as AK 47 na mão e aí notei que a coisa tinha começado a sério, mas mesmo a sério. O MPLA ataca a Sede da FNLA na Avenida do Brasil e faz bater em retirada os militares da FNLA que estavam no Bairro do Cazenga.
Mas a vida tinha de continuar e peguei na minha Yamaha 750 Four e fui para o serviço, no Gabinete de Habitação de Luanda que funcionava junto do Laboratório de Engenharia de Angola. O que vi pelo caminho já próximo do Bairro Prenda era marcante, corpos crivados de balas, a Morgue junto ao Bairro da Samba, rebentava com corpos anónimos, o cheiro fedia bem longe, era violento tal cenário.
A tarde desloquei-me ao Bairro da Vila Alice para saber de um colega meu que não dava sinais de si e no cruzamento da Avenida do Brasil com o Marçal e Macambira, que o cenário era de guerra total, era preciso fazer “chicane” para não pisar os corpos, alguns com a famosa mala “James Bond” ao lado, descalços esventrados, inchados. As malas, essas, ninguém se atreveria a pegar já que era uma imagem dos homens da FNLA, entenda-se porquê, era o sinal para levar um balázio. O meu amigo tinha conseguido basar para a zona do Hospital Militar.
Eu, queria que o meu amigo fosse comigo ao Bairro de São Pedro para me ajudar a trazer o Land Rover Série 3 do ano de 1975, que estava na garagem da casa dos meus pais, junto às Malas Onil. Mas o pior estava para vir. Como já referi, a FNLA batia em retirada a partir do Cazenga para se refugiar no Forte de São Pedro da Barra, um antigo Forte que protegia a entrada da Baía de Luanda. O meu amigo largou-me a entrada do Bairro, já se ouviam os silvos da balas e os rebentamentos da bazucas de dos mísseis, para preciso levar o Série para “Luanda” a todo o custo. Quando retiro o carro da garagem passam os primeiros soldados da FNLA, numa correria louca em direcção ao mar. Arranco com o Série, carregado de tralhas e ao travar para me proteger uma parte da carga é projectada sobre a alanca das mudanças e o Série fica com a 3.ª mudança engrenada numa zona de areia vermelha, típica dessa zona. Depois foi esperar por uma “calma” entrar no Série engrenar a as redutoras e partir até a Ponte do Cacuaco, onde estava junto à “Asfal” uma Berliet do Exército Português que “escoltou” o Série até lugar seguro e por lá ficou até hoje.
Eu, continuei por lá e depois, muito depois parti e ainda não consegui lá chegar, tentei,mas fiquei pelo Mali, agora só me lembro que “Quando o avião levantou voo e fez a curva para a direita tive a noção exacta que seria a última vez que veria a minha Terra, Terra, em que tinha nascido e, Terra que queria ajudar a crescer.”
Salvou-se um Land Rover Série III , sei que tinha a matrícula AAH- – , o resto sumiu-se da minha memória.
Inté.
Comentários
7 comentários a “NO CAOS DA GUERRA, SALVOU-SE UM SÉRIE 3”
Obrigado por continuares com as memórias MAN!
Abraço
AAH de Paz
AAH de sorte estares vivo
AAH de Savimbi
Simplesmente excelente Mestre! Não me canso de dizer: essas memórias têm que ser publicadas um dia
Mestre e que tal pensar num livro para arquivar isso da memória?
…Acho que deviamos pensar seriamente em fazer uma história de vida…assim uma coisa antropológica… 😉
Ana
Decorria o ano de 1975…ano que deu um rumo diferente às nossas vidas, sim porque tinhamos acabado de casar, com um imaginário cheio de sonhos e projectos que por força do destino e de toda a situação descrita se alterou, que ninguém sabe se para melhor.
A vida dá-nos grandes lições e devemos aprender com elas. Esta foi sem dúvida uma lição de vida que nos permitiu fortalecer e seguir em frente para novos desafios. E… já lá vão 34 anos.
Bjus
Romy
Boas a todos,
cada vez que leio estas memórias enriqueço-me. Obrigado pela partilha, Mestre. Também, eu, gostava de ver tais relatos publicados…partilhe mais além…para pensar, Mestre. Beijocas.