“Quando o avião levantou voo e fez a curva para a direita tive a noção exacta que seria a última vez que veria a minha Terra, Terra em que tinha nascido e por opcção Terra que queria ajudar a crescer.”
Numa noite de um dia qualquer de um ano qualquer mas distante, que não quero recordar e que paira sobre mim como um pesadelo angustiante, quando aquele Boeing 747 da TAP, me empurrou contra o banco e empinou o nariz e curvou para a direita, sabia que nunca mais voltaria a minha Luanda. Tinha ficado tudo para trás, os amigos, a escola, o emprego e sobretudo a infância, feliz muito feliz. O meu Bairro o Marçal não era mais que um Musseque a entrada da chamada cidade. Era fixe cheio de vida e de ritmo, merengues em cada esquina, pára-cuca -doce de jinguba com acúcar -e maçã da índia, gajajas com sabor amargo como a múcua, castanha de cajú queimada na hora nos balaios da Jezuína ou da Mabunda. Ainda hoje consigo descrever na minha memória os cantos e os becos daquele Bairro, esquina por esquina, beco por beco. Muitas vezes dou por mima navegar por aqueles becos apertados, mas adiante que se faz tarde.
Mas o choque foi maior quando de manhã chegado a Capital do Império o frio intenso me fez gelar o corpo e a alma. Vinha de manga curta e o “baque” foi violento, tremia por todo o lado com medo do desconhecido.
Tinha a Rosa Maria e o meu cunhado a espera e partimos para o norte, passando pela Figueira da Foz aonde estavam os meus pais, que não sabiam da minha vinda.
O meu pai preocupado deu-me 2500$00, porque eu nem sabia a cor do dinheiro de cá. Lá fomos para o norte, para casa da minha irmã Maria do Carmo, que nos deu guarida, cama e comida.
Agora era preciso arranjar emprego, mas o País estava em convulsão, eram as nacionalizações, era o PREC, era o COPCON era o SAL era a revolução, enfim o necessário.
Então de manhã bem cedo estava a porta da Biblioteca do Porto, para ver os jornais e ler os anúncios e de lá partia a pé em busca de trabalho, mas a resposta era sempre a mesma “Ainda é muito novo, preciso com mais experiência” ou “Já está ocupado”. Mas, o que era necessário era não desistir, era preciso lutar, ir a lutar porque as coisas estavam cada vez mais difíceis, sem dinheiro, casado e a viver e a comer em casa da miha irmã.
A Rosa Maria tinha conhecido uma Condesa que lhe encomendavas muitos vestidos e arranjos e isso ia dando para as nossas despesas, mas às vezes era muito complicado, porque não havia $$$ nenhum, zero, nada, nem um simles centavo. Sabem o que é um tipo ver um bolo ou querer tomar um café e népia, “comer com os olhos”. Sabem o que é ter sapatos mas sentir o frio da calçada e o molhado do chão, se não sabem também nunca queiram saber, porque é mau, muito mau, transforma um tipo num farrapo se for abaixo das canetas. Nunca nos devemos resignar, nunca, nunca, nunca, NUNCA.
Até que um dia soube que o Ministério da Administração Interna, MAI, estava a recrutar pessoal para os GAT’s, Gabinetes de Apoio Técnico e resolvi ir a Lisboa ao Ministério, seja semprei pensei que devemos ir se lutamos por uma coisa. E assim fiz, fui com a Rosa no comboio regional até a Figueira da Foz, falei com o meu pai e pedi-lhe emprestados 500$00 – todos esses valores estão anotados e guardados numa pasta – e parti para Lisboa de carro porque o meu pai disse que assim era melhor. Atestou o Austin 1300, com a matrícula VZ-52-12 e parti a noite. Chegamos a Lisboa perto da meia noite e dormimos dentro do carro, num Parque de estacionamento por detrás do Rossio, penso que ainda existe.
De manhã cedo, lá fui para o MAI, apresentaram-me ao Engenheiro Manuel Dias, entreguei a minha candidatura e o o currículo e voltamos para a Figueira da Foz e depois de regional para o Porto.
A espera foi dolorosa até que um dia recebo uma carta para ir a uma entrevista a Estremoz. Nem hesitei, falei com o meu cunhado e pedi-lhe 300$00 emprestado, o dinheiro suficiente para ir, só para ir, porque não podia regressar, não queria regressar, tinha de lutar pelo lugar.
Fui de comboio, sempre de Regional, saí à meia noite e cheguei a Estremoz com 3 transbordos cerca das 15.00 horas.
Fui ao GAT e sorte do caraças, o Director do GAT que estava de saída para Lisboa é a pessoa a quem eu pergunto pelas instalações ele respondeu com uma pergunta, “Queria alguma coisa delá, é que eu sou o Director”, e eu respondi vinha para a entrevista. Mas o homem estava cheio de pressa, mas lá me atendeu depois de muita insistência.
Depois de muita pergunta/resposta o Eng.º Valdez responde, “preciso de muita gente, topógrafos, medidores, desenhadores mas engenheiros só com muita experiência, porque novatos já tenho uma”, e lá estava uma engenheira a um canto da sala.
Eu disse-lhe dê-me uma oprtunidade, uma semana, só uma semana, mais, trabalho com engenheiro e recebo com desenhador, mas dê-me essa oportunidade. O homem viu-me tão aflito que disse combinado, uma semana, mas uma semana.
Chamou o Modesto um desenhador e disse-lhe entrega aqui a este Senhor os desenhos do Lavadouro de Rio de Moinhos para ele calcular.
Mas o pior estava para vir, sem guito e sem poiso a coisa estava a ficar preta, o frio era mais que muito, era cortante aquele frio de Estremoz, e o Modesto perguntou-me, “Tens onde ficar” e a resposta foi óbvia, “Não”. Não te preocupes ficas no “Xico do Cano”, onde eu estou e temos direito a pensão completa por 3500$00. E assim foi o Senhor Francisco recebeu-me de braços abertos e instalou-me o melhor que pôde, ficar-lhe-ei grato para toda a vida, nunca me esquecerei disso, jamais.
No dia seguinte comecei na labuta e fui esgalhando trabalho atrás de trabalho, fazia tudo, cálculos, desenho, medições e orçamentos. Uma semana depois estava admitido não como desenhador mas como Engenheiro de 1.ª.
Mas havia outro desafio mais aliciante, era o GAT “entrar” na Câmara de Vila Viçosa, o Presidente na altura não via com bons olhos o GAT e solicitou a elaboração do Projecto da Rede de Abastecimento de Água a Vila Viçosa.
Era um projecto difícil, com muitas implicações de aprovação e o Eng.º Valdez faz-me o desafio “Parola temos de fazer isto, rápido e bem para ser aprovado, pelo Núcleo de Saneamento Básico de Évora”. Ele sabia o que dizia e as implicações que isso trazia, era obra entrar no sistema dominante, mas nada como tentar.
O desafio era enorme, mas era preciso avançar, rápido mas bem, e era aminha área preferida, sempre adorei hidráulica, fascinava-me o desafio.
Parto para o terreno com o topografo o Senhor Pinto e com o trabalho de campo e de Gabinete em pouco mais de um mês, o projecto estava em Évora para aprovação no NSBE.
A informação do NSBE era um “tratado”ainda hoje guardo aquele documento com especial carinho e orgulho, aprovava o projecto e reconhecia “Excelência” na sua qualidade. O Eng. Valdez reconhecido por este trabalho promove-me a Eng.º Especialista Principal.
Mas nem tudo são rosas, o sentir da calçada fria nos pés e o frio intenso deixaram marcas, marcas profundas, que ainda continuam por cá, mas a luta mais uma vez a luta e a força de vontade levaram a que tudo fosse ultrapassado. Foi uma das fases mais difíceis da minha vida que só com a ajuda da Rosa Maria e dos amigos em Estremoz foi possível ultrapassar, mas mais uma vez tinha conseguido.
Entretanto na altura tinha concorrido para quado da ONU e enviei a minha candidatura para Genebra e tempois depois recebi umja carta para mim apresentar em Genebra para ir para o Burkina Faso, não fui porque estava doente, muito doente o frio tinha deixado as suas marcas. Hoje questiono-me o que teria sido a minha vida se tivesse optado por ser quadro da ONU, mas não gosto de pensar nisso.
Estabilizado e reconhecido o meu trabalho pelo Eng.º Manuel Dias Coordenador Geral dos GAT’s, fui depois para Manteigas, Seia e Lousã sempre com o trabalho de “sapa” de entrar nas Câmaras Municipais o que era difícil, muito difícil.
Hoje reconheço que passei as “passas do diabo”, que o frio e às vezes a fome me fizeram ver as coisas de modo diferente, mas também sei que só com a ajuda da família foi possível ultrapassar situações de quase desepero, nomeadamente quando cá cheguei em que muitas vezes “comia com os olhos” o que via nas montras dos restaurantes, mas isso fez de mim uma pessoa mais solidária e sensível.
Os meus amigos foram e serão sempre muito importantes na minha vida e um tipo sem amigos não é nada é um “sózinho”. “Sózinho” nem sequer é uma palavra bonita, atraente é um “só pequenino”.
Eu costumo dizer aos “putos” meus amigos que a amizade é um pilar da vida e que neste mundo dos “isolados” de quatro paredes em altura é importante nós termos mais alguém para além da família.
Eu já passei por muito, por fome, por muito frio, por emboscadas com o limiar da morte, por aventura no limiar da sede, por doença no limiar da cegueira, mas luto, luto sempre porque acredito na família e nos amigos. Todos os dias quando acordo o meu primeiro acto é ver se vejo a luz do sol a entrar na persiana, é ver se vejo o reflexo da luz do relógio do rádio é ver se vejo sem reflexos ou relâmpagos é sobretudo ver, até quando não sei, mas ver e viver é o mais importante.
Fiquem bem.
Inté.
A Rosa Maria, ao Nuno, ao Rui e a minha mãe Maria do Céu, que são os meus pilares, amo-vos bués.