CRUZAMENTO DESCRUZADO DA SARATOGA

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 Avenida dos Combatentes

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Ah pois ééééé.

O cruzamento da Saratoga como era conhecido um dos mais movimentados cruzamentos de Luanda, tinha a particularidade de ser um dos pontos onde a cidade passava da alta para a baixa.

– O cruzamento fica a 200.00 mts na perpendicular.

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A Saratoga era uma casa de modas que vendia fatos completos de pronto a vestir, coisa muito “in” para a época e já lá vão uns 40 anos ou mais.

– Uma das “Saratoga”.

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Melhor só a “Boutique La Finesse” do Augustus, com as suas calças a boca de sino sem bolsos num tecido escorregadio e camisas mil flores, altamente para a época, podem crer.

Este cruzamento tinha uns semáforos que orientam o grande fluxo de carros que vinham da Rua Brito Godins, da Rua Coronel Artur de Paiva e da Rua Vasco da Gama que descia para a Mutamba.

Dito isto, falo neste cruzamento, porque:

Em Dezembro de 197 e tal,  vinha eu descansado depois de um dia de trabalho, num País jovem, com uns dias de vida, um país com futuro, que tinha escolhido com meu País, quando ao parar nos semáforos da Saratoga, sou abordado um uns tipos fardados fortemente armados com umas metralhadoras ligeiras que me mandaram encostar.

Passei o sinal virei a direita para a Coronel Artur de Paiva e parei no parque de estacionamento do meu prédio que era logo ao virar da esquina.

Eu nunca gostei de andar de carro, só de Land Rover, mas mesmo estes têm de ser Séries ou Defender’s e nesse dia fui buscar um VW 1003 S de um amigo meu para carregar a bateria, já que este meu amigo estava a uns tempos em Portugal e o carro era para embarcar no navio Quelimane que se encontrava ao largo a espera de vaga para atracar.

E naquele tempo não havia as pinturas que há hoje, nem os cromados pelo que os carros levavam um espécie de cêra e os cromados eram protegidos com uma tinta preta de protecção.Esta tinta preta é que se calhar fez rebentar a bomba.

Como disse, parei no parque do meu prédio e de imediato fui encostado ao carro e fui logo agredido e insultado, desde reaccionário, sabotador, colonialista, sei lá muitos nomes feios.

Bem a coisa aqueceu e de que maneira.

O pessoal queria as chaves do carro, queria julgamento popular por “sabotador” da economia, queria linchamento popular, mas o povo é sereno e como era fim da tarde e o pessoal subia da baixa para a alta para as zonas residenciais dos Bairros como Marçal, Operário, Rangel, Sambizanga, eis que se começa a juntar umas centenas de pessoas que envolvendo os pseudos militares, começam por ficar revoltadas com a atitude deles e começam a dizer que eles queriam era roubar-me o carro.

A coisa ficou muita má e então um deles disse-me, “agora safas-te, mas logo aparecemos por cá para te levar para julgamento popular no Rangel”.

Bem, fui levar o VW ao Bairro da Sagrada Família a casa da namorada do meu colega e fui direitinho para casa a pensar que não passaria dessa noite. O aviso tinha sido forte e explícito, “Logo vimos cá buscar-te, colonialista de merda”.

Bem, fui jantar a casa do meu Tio João, contei o sucedido e sinceramente a coisa não estava boa.

Depois do jantar, optei por telefonar a minha ex-chefe no Instituto de Crédito de Angola, que agora era uma importante quadro do Governo, que me aconselhou a ter calma e que seria melhor sair por uns dias porque havia uma série de pseudo militares armados que assaltavam toda a gente.

Assim, conseguiu arranjar-me um bilhete de avião para o dia seguinte, com regresso para 8 dias depois.

Bem, mas eu tinha decidido ir dormir a casa, um belo apartamento T1, fixe, bem decorado,que aguardava o regresso da Rosa Maria de Portugal, na semana seguinte. Nesse dia tinha comprado um excelente aspirador da Bosch, era de cor vermelha, lembro-me perfeitamente de o ter comprado na loja da Sonilândia, com “i” junto a Mutamba.

Fui para casa, mas não consegui pregar olho sempre a espera do toque da campaínha, sempre a espera de ser levado a qualquer momento como tinha sido prometido e dito com raiva.

Eram para aí umas  6 horas da manhã quando toca a campaínha e abri a porta e eis que aparece o meu Tio João, com pão e leite querendo saber se eu estava  tudo bem. Nessa altura o pão era raccionado e tinha de se sair cedo bem cedo para se comprar pão  que por conhecimento se conseguia na padaria junto aos correios da Brito Godins.

Bem o sábado foi um sufoco porque sabia que jamais voltaria a minha terra, jamais voltaria ao meu apartamento, jamais andaria de Intrépido, mas era a vida e não podia estar hesitante.

A tarde peguei no Série 3 que era do meu irmão e levei-o a casa da minha cunhada que morava na Avenida António Barroso e deixei lá ficar o carro carregado de açúcar amarelo, ehehehe e malas, sim porque este carro também estava para embarcar num barco, que não o Quelimane. Esse Land Rover Série 3 tinha a matrícula AAH-  –  , mas os números já não sei.

Pelas 18.00 horas o meu tio levou-me ao aeroporto, despediu-se e aguardei até as 24.00 horas pela partida.

Quando o avião levantou voo e fez a curva para a direita tive a noção exacta que seria a última vez que veria  a minha Terra, Terra que tinha escolhido como minhapor nascimento e opcção,Terra que queria ajudar a crescer.

Bem, hoje não sei se fiz bem, só sei que os 6 meses seguintes foram bem piores, muito piores, mas só eu e a Rosa Maria é que sabemos mas isso fica para nós, porque algumas dessas marcas estão no meu corpo e na minha memória, e não há “reset” que os apague. Às vezes quando estou só  é que penso nisso e como me virei sozinho neste “mundo” diferente e desconhecido.

Para ultrapassar esta fase muito difícil do regresso, para além dos nossos pais que ajudavam com o pouco que podiam, não quero deixar de salientar as seguintes Homens e uma Mulher:

-Engenheiro António Valdez do Gat de Estremoz

-Engenheiro Manuel Dias do MAI

– Doutor António Véstias da Câmara de Estremoz

– A Menina Amélia do Brenhol de Estremoz.

– O Senhor Francisco o “Chico do Cano” de Estremoz

Foram muito importantes para mim porque me acolheram e acreditaram em mim e nas minhas capacidades.

A minha Rua

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O meu Bairro.

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A minha escola bwé de linda.

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Comentários

3 comentários a “CRUZAMENTO DESCRUZADO DA SARATOGA”

  1. Avatar de Carlos Costa
    Carlos Costa

    Parola Gonçalves .
    Compreendo perfeitamente o seu estado de espirito. Tenho casos semelhantes na familia (Um bem proximo de mim),quando uma pessoa pensa que tem o futuro traçado e que está encaminhado para a sua realização, é muito ,mesmo muito dificil aceitar o desfezer dum sonho, infelizmente aconteceu. Tambem sei que a parte dificil foi regressar a Portugal , e levar com estatuto de Retornado ou Português de segunda.Pode crer que o compreendo muito bem. Vivi esse tempo e foi muito dificil para mim ver a minha familia a passar menos bem. Felizmente o tempo passou mas a recordação ficou muito marcada.
    Um Bem Haja
    Carlos Costa
    Oeiras

  2. Por alguma razão te tornaste no melhor pai do Mundo. As cicatrizes do Passado fizeram-te um ser compreensivo, lutador e bravo no Presente.

    Serás sempre o meu melhor amigo, o meu herói, o meu exemplo de vida.

    Amo-te, pai.

  3. O teu bairro que era o meu, as tuas ruas que eram as minhas e a Escola que ambos lá estudamos. Podemos ser de épocas diferentes, mas estávamos lá.

    Um abraço