MUSSEQUE MARÇAL – Fragmentos de memórias nº 13

Musseque Marçal quase ao pormenor – 1.ª parte

 Todos os Musseques tinham, a sua história, mas o Marçal batia-os a todos. Era um Musseque diferente, já que ficava entalado entre a CAOP, o Sambizanga, o Rangel e a Vila Alice. A sua areia vermelha era uma imagem de marca, que tornava os charcos na época das chuvas da cor do Glorioso.

Mas, o Marçal era mais do que isso, tinha os seus símbolos, os seus heróis. Aqui, vou tentar ao fim de quase 40 anos lembrar-me deles aleatoriamente.

– Bairro do Teixeira, era como que um condomínio fechado, mesmo encostado à Rua Garcia da Horta, hoje Soba Manduomé;

– Casa Gonçalves, uma Casa de Pasto tradicional, que nunca fechava durante todo o ano. Peixe frito com arroz, e massa com aba guisada, era o forte da casa. Tinha também para os “brancos” uma espécie de pensão, com a sardinha salgada vinda do Continente (Portugal) era o prato forte ao sábado;

– Armazéns do Suba – eram um enorme edifício retangular, caiado de branco, mas com um interior repleto de bons tecidos, perfumes e tudo de chic o que se consumia na Europa, mas não no Continente (Portugal), onde a nata da burguesia branca, que em limusinas, pelo meio da areia vermelha, iam ao final da tarde, ver as novidades de alta-costura.

– Armazéns do Sameiro – edifício imponente, logo no início da rua que cruzava o Musseque, desde o Zé das Molas até a Avenida do Brasil. Aqui vendia-se de tudo, barris de vinho, bacalhau, detergentes, tecidos, tudo o que se possa vender num grande armazém digno desse nome. O nome do dono era o Senhor Teixeira;

– Bar do Chaves – ficava no cruzamento das ruas de areia vermelha da transversal do Zé das Molas, com a rua de acesso ao Suba. Em tempos era constituído por duas partes, uma loja de Musseque e um bar. Mais tarde cresceu para um Bar, onde ao final da tarde se bebiam as melhores Nocais’s;

– Zé das Molas, o nome diz tudo, uma das melhores casas na reparação de molas de camiões. Ficava, logo no início da rua, quase ao pé das Bombas da Texaco, quem ia para a Cuca. Era uma das emblemáticas casas do bairro. Forjas a trabalhar todo o dia, a despachar as Mercedes 1513 e as Scania e Volvo;

– Casa Lobecos –  apareceu mais tarde, era contígua ao Zé das Molas, e foi a primeira casa a comprar e a vender artigos usados. Parece que hoje ainda existe aqui no “puto”, no Porto, lá para os lados do Hospital Santo António;

– Carpintaria dos Pintos – eram dois irmãos, um, o mais velho, mais alto e magro, tinha uma carpintaria de móveis mais trabalhados, e ficava entre o Bairro dos Teixeira e a Casa Gonçalves. O outro, mais baixo e “largo”, ficava logo no início do Musseque bem junto à esquina da Avenida Brasil com a Rua João das Regras.

Qualquer um fazia mobílias de quarto e sala por encomenda. O primeiro, tinha uma carrinha já velha, na altura uma Chevrolet, daquelas que se vê nos filmes, tal e qual;

Mas também havia pessoas, e muito importantes, que eram imagens de marca do nosso Musseque.

– A Senhora Jesuína, uma senhora de grande porte, com muitos filhos e netos, uma verdadeira matriarca, que com doces de coco, de ginguba e paracuca, fazia dinheiro para criar a grande prole. Passava o dia sentada num velho banco de madeira onde, com um cigarro acesso, com a parte a arder para dentro da boca, confeccionava os excelentes doces e a melhor paracuca do mundo. Era uma heroína, pelo que fazia, e pelo que sofreu com a PIDE, já que tinha alguns filhos presos politicamente;

– A Senhora Mabunda, uma mulher culta, embora fosse analfabeta. Andava sempre com vistosos panos coloridos, assumindo sem rodeios, a sua não-aceitação da situação de colonizada. Era uma excelente pessoa, respeitada por todos no Bairro. Tinha uma filha, casada com um branco abastado que lhe garantia uma vida mais desafogada.

– A Senhora Manuela, uma viúva, cujo marido tinha morrido na cadeia, por ser contra o Regime. Mesmo com esta situação era uma pessoa afável, ternurenta e ganhava a vida como lavadeira e engomadeira, dos Tugas idos do continente. A Senhora Manuela, andava sempre de negro;

– A Dona Guinhas, uma espécie de “endireita”, que tratava de todos os males dos ossos e da coluna. A Dona Guinhas era cega desde a nascença, mas tinha o dom, de com os seus dedos fazer milagres;

– Mas também havia a Joana Maluca, que era dos Musseques todos, cruzava o nosso Musseque, quase sempre ao final tarde, onde depois de provocada, mostrava as suas partes baixas, seguida de umas palavras asneiradas.

Também havia o Elias diá Kimuezo, o Rei do Semba e dos merengues. Cruzava, por norma, sempre vestido de branco, o Marçal em direcção ao Bairro de São Paulo. Caminhava quase em levitação sobre a areia vermelha, para não sujar o sapato de pala branco.

Mas também tínhamos de passagem os homens de Sião Toco, uma seita toda vestida de branco, cuja Igreja tinha sede lá para os lados da Terra Nova.